27.5.09

Alegoria do regime


Quem vem e atravessa o rio pela Ponte de Santa Clara, vindo do Largo da Portagem, tem muito que penar até conseguir ver o velho, velhíssimo, casario que circunda o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha. Não perde grande coisa, apenas mais um exemplo de como as fachadas escondem, frequentemente, grandes vergonhas; ou a revelação de que o desmazelo, por vezes, chega ao ponto de nem esconder coisa nenhuma. Mas não é isso que importa. Já peguei no assunto e também já percebi que, como a maior parte das grandes questões coimbrãs, também esta se resume a um folhetim instantâneo, que se apagou volvido o primeiro par de dias. Paciência.

Interessa-me caracterizar o calvário que se estende desde a saída da Ponte, creio que de Santa Clara - por estas bandas nunca se sabe bem o nome das pontes - até chegar, finalmente, às imediações do Mosteiro. Em Coimbra, é costume contar-se que há um prédio que galgou doze pisos, em plena baixa, graças à miopia municipal. Pois bem, quem ordenou o trânsito, desde a Ponte de Santa Clara, em torno do Estádio Universitário e até ao Mosteiro, só podia ser cego.

Um míope grave perceberia que um cruzamento daqueles, no fim de uma ponte, é um erro infantil. Qualquer octogenário, acometido por severas cataratas, intuiria o disparate de transformar o Estádio Universitário numa rotunda. E duvido que, mesmo o Perna de Pau, aquele pirata zarolho da Olá, não percebesse que encaminhar milhares de automóveis para o portão de uma escola é uma tremenda irresponsabilidade.

Pois bem, hoje, o regresso a casa de quem mora na margem esquerda é comparável ao de quem tem a bênção de residir em Massamá. O risco de atropelamento, insustentável, a que estão sujeitos os alunos da Escola Manuel da Silva Gaio, não augura boas notícias. E os duzentos metros que medeiam entre a Portagem e o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha chegam a fazer-se numa hora.

Para ficar tudo dito, falta apenas dizer que o sinistro foi coroado por um viaduto feio, confuso e sombrio. Mas sobretudo submisso. Parecendo beijar os respeitáveis pés do Fórum Coimbra e acabando por ser, afinal, uma sublime alegoria do regime.

25.5.09

Segunda-feira. Vamos, animem-se!


E Deus criou a mulher.

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(...)Interessa-me caracterizar o calvário que se estende desde a saída da Ponte, creio que de Santa Clara - por estas bandas nunca se sabe bem o nome das pontes - até chegar, finalmente, às imediações do Mosteiro. Em Coimbra, é costume contar-se que há um prédio que galgou doze pisos, em plena baixa, graças à miopia municipal. Pois bem, quem ordenou o trânsito, desde a Ponte de Santa Clara, em torno do Estádio Universitário e até ao Mosteiro, só podia ser cego.(...)

22.5.09

Existir



Morreu hoje, aos 74 anos, João Bénard da Costa.

Nunca perceberei bem esta coisa de existirmos num dia e, no dia seguinte, deixarmos de existir.

Acho que não existimos verdadeiramente.
Existe o mundo. Nós limitamo-nos a acontecer.

19.5.09

Manifesto anti-panfletário

A comunicação política, maxime a opinião publicada por políticos nos jornais, padece de um mal terrível. Como se instituiu a ideia de que o povo é ignorante, muitos políticos optam por escrever num registo demasiado primário, que acaba por ser o mínimo denominador comum entre o “pouco” que o povo sabe e o “muito” que as “elites” sabem. Como ambas as presunções são exageradas, resultam prosas eivadas de soundbytes, sem fundamentação, que tanto podem ser escritas pelos próprios como por qualquer colaborador mais diligente.

Escrevo encorajado pela profusão deste “género literário” na política coimbrã e, mais egoisticamente, porque, de quando em vez, sou acusado de me perder com “lirismos”, em vez de ser mais “claro e objectivo”.

Na política portuguesa, a “clareza” e a “objectividade” estão no patamar mais alto da consideração pública - são verdadeiras “regras de ouro” - e tomaram o lugar das análises rigorosas, de alguma profundidade e, até, da liberdade de opinião. Quem queira fazer política, deve ser “claro” e “objectivo”, para que todos “entendam”. Mesmo que para isso tenha que abdicar das opiniões não abençoadas pela maioria ou reproduzir disparates, firme e repetidamente. Que me perdoem, mas não estou para isso. Até porque essa missão está abundantemente distribuída, por outros que a carregam com maior entusiasmo.

Outra das “regras de ouro” para os políticos que escrevem nos jornais, e uma regra que, em Coimbra, atinge proporções patológicas, é transformarem os seus espaços de opinião em manifestos eleitorais. O que, notoriamente, confunde planos de intervenção, redundando em maus artigos de opinião e em programas eleitorais fora de tempo.

Por mim e no que respeita a Coimbra, tenho tentado escrever o que os outros não escrevem, criticar o que os outros não criticam, defender o que os outros não defendem, tanto no que respeita aos meus “adversários” políticos, como no que respeita ao partido a que pertenço. Adoptando um estilo, assumidamente, heterodoxo. E sujeitando-me, também por isso, a uma relativa indiferença da cidade. Mas creio que, assim, preencho melhor este “Passeio Público” e sirvo melhor a política, que não é um passeio, é uma corrida de fundo.

Recordo apenas que a política coimbrã, como a política de um modo geral, tem tido ao leme protagonistas militantemente “claros e objectivos”, com propostas “concretas”, prontos a resolver, de uma penada, os problemas todos do mundo. Sendo o resultado a que chegámos aquele que todos, decerto, também “entendem”.

18.5.09

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A comunicação política, maxime a opinião publicada por políticos nos jornais, padece de um mal terrível. Como se instituiu a ideia de que o povo é ignorante, muitos políticos optam por escrever num registo demasiado primário, que acaba por ser o mínimo denominador comum entre o “pouco” que o povo sabe e o “muito” que as “elites” sabem. Como ambas as presunções são exageradas, resultam prosas eivadas de soundbytes, sem fundamentação, que tanto podem ser escritas pelos próprios como por qualquer colaborador mais diligente.
(...)

13.5.09

Uma decisão acertada

Fazer apologias compulsivas do Governo não é a minha especialidade. Mas quem lida com empresas todos os dias, no contexto actual, percebe o sentido desta decisão e o seu alcance no combate à crise, no apoio à exportação e na manutenção de postos de trabalho.

Vergonha

Bem sei que sou (transitoriamente) suspeito mas, ainda assim, devo esclarecer que não gosto de certas generalizações e que a diabolização dos políticos, quando conduz, tout court, à diabolização da política e mesmo dos partidos, não presta grande serviço à democracia.

Esse tipo de diabolização terá como única consequência, do ponto de vista dos protagonistas políticos, manter os piores e arredar os melhores.

De todo o modo, acho que este estudo merece a maior das atenções. Principalmente, pela parte dos partidos. De todos os partidos.

Coimbra a sério


Mais uma vez, o prof. Júlio Mota esteve em grande com o Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios da FEUC.

A sessão de ontem, a décima, com o título "A morte do homem trabalhador - 5 Retratos do Trabalho no Século XXI", trouxe-nos um notável documentário de Michael Glawogger.

Ficam os meus parabéns, pela abordagem inquietante dos labirintos perversos do trabalho, à escala global; e a a minha penitência por não ter podido, como gostaria, ficar para o debate.

Sozinho, no escuro da sala, dei por mim a pensar num twit de ontem : A política vive muito de estatísticas, mas debruça-se pouco na profundidade dos problemas. A "ciência" vence, assim, as "humanidades"...

Coimbra podia bem ser, aqui, uma lição. Vai sendo...

O princípio do fim


Álvaro Seco, vereador socialista na câmara de Coimbra, pronunciou-se publicamente contra a degradação que envolve o renascido Mosteiro de Santa Clara-a -Velha. Aproveitou a ocasião para verberar o “anátema” que recai sobre as “margens esquerdas”. E em jeito de resposta, também publicada no Jornal de Notícias, veio o dr. Encarnação afirmar que ”Álvaro Seco está parado no tempo, virado para trás, para o antes do Convento de São Francisco, de Santa Clara-a-Velha…”. Eu creio que a deselegância deste comentário, mais ou menos despercebido, marca o princípio do fim da história para o dr. Encarnação. Mas vamos por partes.

Bem entendo as preocupações do vereador Álvaro Seco. Como as entendem, claro, todos os que passaram por Santa Clara-a-Velha e se arrepiaram com a miséria urbana que emoldura o monumento.

A minha mãe costuma dizer - e as mães dizem sempre bem - que, sem calçado a preceito, não há fatiota que me valha. Claro que, se não fosse minha mãe, outras recomendações lhe assaltariam o espírito. Mas como é, sustenta-se na convicção de que os andrajos sejam o maior dos meus pecados; e de que são, obviamente, a mácula possível, na candura deste que, a espaços, vos impacienta. Essa é, no entanto, uma outra conversa.

O que aqui importa é que, naquela sábia perspectiva, Santa Clara-a-Velha é, verdadeiramente, um monumento descalço. E que não tardará até que as mães de Coimbra se debrucem sobre o problema, firme e diligentemente, daquela maneira que só elas, as nossas estimadas mães, sabem fazer. Desvalorizar as coisas que o senso perfeito das mães de Coimbra nunca deixaria escapar é, pois, um erro grosseiro - a propósito, infantil - que, ao dr. Encarnação, sairá caro.
Mas o epílogo do presidente que se aparenta a uma encarnação da própria divindade - mesmo quando ao leme de um executivo profano - cumpre-se na tardia, embora inevitável, revelação da sua natureza autêntica. Cruamente plasmada nas infelizes acusações que dirigiu ao vereador Álvaro Seco.

Conclui-se que o dr. Encarnação é, afinal, um homem como nós. E, como todos nós, simples mortais, é mesmo capaz das maiores intolerâncias e ingratidões. Quando se dispôs a acompanhá-lo na gestão do município, aliviando-o da muito incómoda protecção civil - perante, até, alguma incompreensão -, o vereador Álvaro Seco, decerto, não previa uma tão fatídica recompensa.

11.5.09

Finalmente, novidades

Também há novidades, verdadeiras novidades, numa cidade que continua às aranhas...

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"(...)O que aqui importa é que, naquela sábia perspectiva, Santa Clara-a-Velha é, verdadeiramente, um monumento descalço. E que não tardará até que as mães de Coimbra se debrucem sobre o problema, firme e diligentemente, daquela maneira que só elas, as nossas estimadas mães, sabem fazer. Desvalorizar as coisas que o senso perfeito das mães de Coimbra nunca deixaria escapar é, pois, um erro grosseiro - a propósito, infantil - que, ao dr. Encarnação, sairá caro (...)"

6.5.09

Democracia qualificada

As maiorias qualificadas na Assembleia, que normalmente resultam de arranjinhos partidários, são um enviesamento.

Mas este desfile de "candidatos a Provedor de Justiça" (ainda nem me habituei à expressão) apresentados pelos partidos é um folhetim equívoco que, a final, terá o mesmo resultado...

Ambivalências

O país ficará uns dias suspenso, à espera que Manuel Alegre decida se sai ou não do PS. Ou não.

5.5.09

Ponte Santa Europa

Perante esta notícia, permito-me postar crónica publicada no Jornal de Notícias a 05/08/2008 e que, suponho, ninguém leu... Silêncios e euforias, como sempre.


SILÊNCIOS E EUFORIAS

O processo “Ponte Europa” voltou aos escaparates porque “a culpa não pode morrer solteira”. Em reacção, todos os partidos entendem que as averiguações devem ser levadas “até às últimas consequências”. Em nome da “transparência”, claro. Observo que a agenda política é marcada, sobretudo, por um ciclo bizantino de silêncios e euforias. De permeio, persistem apenas as trivialidades do costume.

Recordo – porque, pelos vistos, não se recorda mais ninguém – que a Assembleia da República recebeu em 2003 uma petição subscrita por mais de quatro mil cidadãos de Coimbra e promovida por um grupo de “jovens” militantes do Partido Socialista. Uma iniciativa que, “nos termos da lei”, levaria à discussão em plenário das razões subjacentes ao incompreensível atraso da obra e à derrapagem financeira que se conhece. Não consta que o plenário tenha promovido alguma discussão a este respeito, tendo ficado para a História, apenas, uma “foto de família” com o Dr. Mota Amaral e uma audiência para esclarecimentos complementares, meses ou anos depois – já nem sei – “em sede de Comissão”.

Desta audiência vem-me à memória, do lado dos deputados, o ar circunspecto, o fastio e a gravidade das perguntas numa cadência ritual; e do lado dos inquiridos confesso, sobretudo, a excitação quase adolescente de quem transpunha, com algum atrevimento, as “convenções do sistema”. Foram, numa perspectiva pessoal, grandes tempos. Mas convenhamos, ficaram por isso mesmo as solenes “últimas consequências” do assunto.

Agora, tantos anos depois, temo que a Ponte a que toda a gente chama Europa mas que o capricho resolveu alcunhar de Rainha Santa se torne pouco mais do que um fetiche da moralização do Estado. Mas o ciclo bizantino dos silêncios e das euforias faz-me acreditar que o tempo acaba sempre por dar razão às causas justas. Ou talvez não.

Um passo em frente


Com balanço positivo, chegou ao fim mais uma edição da Feira do Livro de Coimbra. Para os que por lá passaram, para os que acompanham a sua afirmação, mesmo no contexto nacional, não surpreende o balanço.

Mas por falar em balanço, a feira despediu-se de Coimbra e, aos poucos, uma memória de tardes caídas restará na cidade: a memória de Coimbra e dos seus na aventura, promíscua e fecunda, de uma feira de cultura. A cultura, embora invoque uma certa divindade - a transcendência da condição humana - é normalmente convocada pelas venalidades do mundo. E nessa medida, uma feira eivada por mãos e vozes e cheiros - promíscua -, se invoca a cultura, também a convoca. É fecunda e, assim, perigosa.

Talvez por isso, não vá o povo pôr-se com ideias, não vá o bom povo beliscar o “regular funcionamento das instituições” - coisa que, embora ninguém saiba muito bem o que é, importa, por via das dúvidas, preservar - a posologia da cultura coimbrã se situe em meia dúzia de tomas ao ano. Talvez por isso a modéstia, assinalável, do nosso receituário público.

Mas como se não bastasse, chega-nos a notícia de que, este ano, nem uma das escolas de Coimbra organizou visitas à Feira do Livro. Desconheço, em súbita bonomia, as responsabilidades pelo feito, mas reconheço-lhe algumas das consequências. Desde logo, o facto de terem sido menos as mãos, as vozes e os cheiros cruzados na Feira. Editando, já agora, a menos jovem de todas as Feiras. Na menos jovem de todas as terras.

Não sou dos que se comovem com a virtude infinita dos jovens, pela razão simples de que a juventude, em si mesma, é pouco mais que uma contingência. Recuso-me, por isso, a panegíricas conjugações com o futuro, a esperança, o sonho e coiso e tal. Mas subtrair à juventude as esporádicas manifestações culturais da cidade, se não é o abismo, é um passo em frente, nessa exacta direcção.

4.5.09

Bloco Central

Desconheço o que seja esta coisa do "bloco central", espécie de cálice sagrado que anda por aí, de mão em mão.

Parece-me equívoca a ideia de que o somatório dos dois principais partidos do regime se traduza no esbatimento de tensões político-sociais e, logo, numa convergência programática.

Por mim, acho que as tensões não se esbateriam (são da natureza social e humana, não são uma prerrogativa dos partidos - outras acabariam por se impor);

e acho que estas sacrossantas convergências são uma simpática contrução teórica mas, concretamente, um imprestável elixir e, mesmo a bem da nação, talvez por isso mesmo, uma péssima homenagem democrática.