Tive o privilégio de assistir às quase duas horas de concerto que a Orquestra Gulbenkian deu em Coimbra, no passado dia 21(2007.09.21). A disciplina harmónica das propostas de Joana Carneiro e a inquietude dramática da sua direcção – a disputar a atenção do público com a orquestra propriamente dita – fizeram-me pensar que, apesar de tudo, não me apetece viver noutra terra que não esta. Assim estas coisas acontecessem mais vezes.
Digo “apesar de tudo” porque, mais do que gostaria, me deixo angustiar pelas nossas insuficiências urbanas e me deslumbro com outras paragens que, filtradas pela distância, parecem sempre ser mais e melhor. Mais modernas, mais compostas, mais ambiciosas e mais seguras de si. Melhor projectadas e melhor resolvidas.
Mas a verdade é que – embora longe de qualquer acto de contrição – não deixo de acreditar na minha cidade. De lembrar o quanto me conforta. O que, de resto, justifica as boutades a que às vezes me permito.
E voltando, pois, ao concerto, não resisto a partilhar o episódio da noite.
Tudo começou com o Festival Académico, Op. 80, de Brahms, ao que se seguiria um concerto para piano e orquestra de Rachmaninov. Mesmo na boca de cena, lá repousava um Steinway & Sons – de cauda, claro – à espera de quem lhe vibrasse as cordas. Terminado o Festival Académico, ficámos à espera do pianista. E, de facto, lá acabou por entrar um sujeito aprumado, arrebatando parte significativa do público – comigo incluído – que lhe rendeu homenagem com um fortíssimo aplauso. O homem, aproximando-se do instrumento, abriu-lhe a cauda e retirou-se. Era, afinal, uma espécie de assistente da orquestra.
Foi quando, ciente do meu próprio ridículo, pensei no quanto às vezes nos deslumbramos com as aparências. Um fato vincado, o contexto propício e o contágio das massas numa sala quase cheia, converteram em estrela da noite o cidadão que se limitava (sem desprestígio!) a abrir o piano. De resto, tal como uma “boa moldura” e a dose certa de ignorância permitem mistificar muito boa gente.
Ora, aqui – e de regresso à vida política da minha cidade –, estimo bem que nenhum dos talhados para “abrir o piano” se ponha a jeito para nos ditar a sorte.
É que no concerto da Gulbenkian, o homem que abria o piano teve o bom senso de não se galvanizar com o equívoco e de não arriscar a performance. Uma prestação razoável (estes assistentes são, por vezes, modestos instrumentistas) talvez iludisse muitos de nós.
Temo, porém, que nem sempre os aprendizes primem pela sensatez. E há certos domínios em que, pura e simplesmente, não se admitem prestações razoáveis.