21.9.10

A ajuda do público


O presidente da República prepara-se para promulgar um diploma que atribuirá às autarquias competência para determinar o encerramento, ou não, das chamadas “grandes superfícies”, nas tardes de domingo e nos feriados. Depois de avanços e recuos vários, lá se entendeu que as câmaras municipais, pela sua proximidade às comunidades, pelo seu conhecimento “do terreno”, estariam em melhores condições para avaliar se, sim ou não, devem as “grandes superfícies” competir, sem quaisquer restrições, com o comércio dito tradicional.

Confesso que, quando ouvi a notícia, me lembrei de Coimbra e antecipei a felicidade do dr. Encarnação por, finalmente, tomar nas mãos o destino da cidade. Logo ele, que tanto lamenta a interferência do poder central, teria aqui uma oportunidade de ouro para concretizar parte dos seus planos, tão injusta e frequentemente interrompidos pela existência malévola de um Governo democraticamente eleito. E comovi-me, pois, com esse horizonte: enfim sós, Coimbra, o dr. Encarnação e um céu estrelado.

É por isso que as últimas notícias sobre o assunto me deixam triste e defraudado. Pelos vistos, não está nos planos da câmara de Coimbra tomar posição sobre a concorrência entre as grandes superfícies e o comércio tradicional. Diz-nos o seu vice-presidente que prefere, em alternativa, referendar o assunto. Ou seja, no seu subido entendimento, são os consumidores que devem decidir o que querem, em ambiente de total “liberdade”. Melhor dito, para a câmara de Coimbra, a melhor forma de regular o mercado é, nem mais, nem menos, perguntar-lhe para onde vai.

Os que continuam a achar que o poder local não se compadece com devaneios ideológicos, encontram neste episódio muito sobre o que falta discutir, a propósito, especialmente em Coimbra.

A crédito do referendo, apaixonadas considerações sobre a democracia participativa e a modernidade na governação local. Ao longe, muito ao longe, arrebatadas posições sobre a imensa sabedoria popular. Extraordinário esforço para iludir a óbvia conclusão que se retira deste assunto: incapaz de responder com acerto à pergunta que lhe é colocada, a câmara de Coimbra prepara-se para pedir, afinal, a ajuda do público.

13.9.10

Tanto tempo



Entrei no Conservatório aos 14 anos, por iniciativa própria. Não entrei cedo e, talvez por isso, não me aguentei por lá, muito além dos 18. Entre o final da adolescência e a entrada na faculdade, a disciplina que o Conservatório impunha estava longe de ocupar as prioridades de um jovem mediano. Isso e uma duvidosa vocação para o bel canto acabaram, à época, por me afastar da Sé Velha – pelo menos durante o dia! - lá onde funcionava o, também velhinho, conservatório de Coimbra. Pode dizer-se que o Conservatório perdeu um sofrível tenor, para ganhar um admirador militante.

Acho que nunca me esqueci das primeiras aulas, dentro de um cubículo que antes tinha sido uma casa de banho. Mas, sobretudo, não me esqueço de como – mesmo naquelas condições – professores, funcionários e alunos desempenhavam, com enorme dignidade, a sua missão. Fizeram-no de tal forma que os governos e executivos municipais sucessivos se permitiram, simplesmente, ignorar a urgência de uma nova casa para o Conservatório. De facto, a qualidade do trabalho pedagógico e artístico desenvolvido, sempre soube iludir as suas limitações de base. E, sobretudo, fez com que poucos se lembrassem de perguntar como seria se em condições, ao menos, razoáveis.

Demorou tempo, demasiado tempo, o novo Conservatório. Da Sé Velha, primeiro, para uma solução mais ou menos itinerante, depois, passaram talvez vinte anos até que se resolvesse o problema, agora, com as novas instalações integradas na Quinta das Flores. E se quisermos ser sérios, vale a pena assumir que nem há um só culpado pelo atraso, nem há um principal responsável pela inauguração.

A política habitual depressa se encarregará de abençoar o Governo, por um lado, a Autarquia pelo outro - e os respectivos partidos -, que juntos cortarão a fita, proferindo eloquentes discursos sobre a vanguarda e o progresso. Eu prefiro dizer que ambos se limitarão a cortar a meta de mãos dadas, com, pelo menos, duas décadas de atraso. Permitam-me que o diga: de parabéns, só mesmo o Conservatório. Por se aguentar de pé, sem sair do tempo, durante tanto tempo.

Hoje, no Jornal de Notícias.

7.9.10

Uma casa na árvore


No princípio, o ventre materno. O que, de facto, importa abunda nesse regaço original: alimento e aconchego, não necessariamente por esta ordem, garantem uma existência que se basta a si própria, uma harmonia quase perfeita. Logo depois, os primeiros passos, os primeiros brinquedos. Antes mesmo de nos darmos conta, estamos com um micro machine nas unhas ou com uma casa de bonecas, para brincar – e disputar – com os primeiros amigos.

Lembro-me que, aos cinco anos, me entretinha a “construir” cabanas, entre os pés da cama e uma cómoda que lhes ficava em frente. Um telhado de lã, creio que um cobertor amarelo com um índio desenhado, assegurava o par de metros quadrados que era o meu castelo no mundo. Uma fortaleza que somava ao alimento e aconchego primeiros, a companhia amontoada, mas feliz, de alguns amigos.

Duram pouco esses tempos. Cumpre-se o liceu, entra-se na faculdade e suspira-se por um quarto à séria, com um sofá e uma televisão, num apartamento com serventia de cozinha. Não é possível ser-se mais feliz. Lá longe – de preferência muito longe – o ventre materno manifesta-se por depósitos bancários, sacos de roupa lavada e tupperwares de carne assada. Acha-se que é possível – e desejável – viver assim, para o resto da vida. Mas não é.

Depressa começam a tratar-nos por “você”, metem-nos um cartão de crédito no bolso, desconfiam se usamos a camisa por fora das calças (o que só volta a consentir-se depois dos quarenta e cinco) e perguntam-nos se já casámos ou se temos filhos. Começamos a pensar que somos ridículos e que não vale a pena resistir: chegou a hora de vivermos a sério. E de nos levarmos a sério.

Rapidamente damos por nós num grande condomínio, a tratar por tu madeiras como o jatobá, a cerejeira e o pinho nórdico. Antes de piscarmos os olhos estamos ao volante de um gigantesco monovolume e a sair do supermercado carregadinhos de fraldas. Um dia, encontramos os nossos filhos debaixo de um cobertor aos pés da cama e percebemos duas coisas: que são felizes e que não têm salvação possível.

É por isso que aconselho todos a experimentar o Treehouse Hotel que, no próximo dia 10, abre ao público no Jardim Botânico, em Coimbra. É uma pequena casa na árvore, engendrada por uma equipa multidisciplinar de arquitectos, biólogos, paisagístas, entre outros, que pode ser reservada como um quarto de hotel. E para quem, às vezes, ainda gostaria de se enrolar num cobertor amarelo, aos pés da cama, com um prato de bolachas e dois amigos, parece ser um sucedâneo socialmente tolerado. Já para não mencionar que algumas das madeiras que tratamos por tu ganham, no Jardim Botânico, uma perspectiva inteiramente nova.

Mais informação sobre o assunto, aqui.