24.2.09

Entre dois mundos


Cumprem-se, mais ou menos por estes dias, dois anos sobre os primeiros textos que publiquei no Jornal de Notícias. Fui desafiado a escrever sobre Coimbra e devo dizer que, exceptuando alguma pulsão partidária - de estreito fascínio, adianto já - pouco ou nada me detive no que haveria de ser, depois de pronto, este meu “passeio público”.

Fui, pois, escrevendo como pude. Às vezes, como calhou. Sozinho. Ou melhor, com Coimbra por perto. Normalmente, do outro lado da janela. O que me obriga a confessar que estes textos não são, nem sempre foram, da minha inteira autoria. São, foram-no, textos filtrados pelo vidro. E isso faz uma enormíssima diferença.

Do lado de lá da janela, Coimbra faz-se de gente e de cheiros. Faz-se de harmonias. Desfaz-se em gritarias. É a cidade que respira, a cidade que transpira. Uma cidade que desliza e que se arrasta. Que nos arrasa.

Para cá do vidro, resta-me a função da cidade. Numa acepção que pretende ser matemática. Que é, por isso, pretensiosa. E chata.

Se lá fora vivem os resultados, cá dentro buscam-se as equações. Por tentativa e erro. O que escrevo é, pois, um compromisso entre a memória fresca do que lá vai fora e a sua aparência, filtrada pelo vidro, vítrea (?), do lado de cá. É o desafio de fazer derreter o vidro, resignado à evidência de que os dois mundos, o de cá e o de lá, jamais se misturam. Jamais se dispensam, também.

Entre dois mundos, pois, tenho ensaiado que a cidade se apouca por estar “parada no tempo”. Tenho defendido, em manifesto défice criativo, o que muitos já defenderam antes de mim: que Coimbra precisa de acompanhar a “modernidade” e que se deixou “ultrapassar” por outras cidades, alegadamente, com menos “potencial”. O que pretende afirmar que o “movimento“, para lá do vidro, é resultado, apenas, de uma função circular. E que isso é mau porque impede o progresso da cidade pela via mais consensual - a reformista. Vou deixar-me dessas coisas.

Chegou a hora de revelar que me inclino, hoje, para a tese contrária. Talvez a cidade não precise de “agitação” nenhuma, de “modernidade” nenhuma. Talvez a natureza reprimida de Coimbra, um inexorável recalcamento, seja mesmo o seu maior trunfo. Talvez seja preferível que a cidade sufoque e esperneie, muito. Até, gloriosamente, rebentar. A vocação de Coimbra sempre foi, afinal, de pendor revolucionário. Pelo menos é o que parece - o que sempre pareceu - do lado de cá do vidro.
Coimbra honrará a sua história.

Hoje, no JN.