Quando há dias discutia a limitação de mandatos com um amigo, ele dizia-me que essa limitação nega a essência da democracia. Na sua perspectiva, a soberania popular é radicalmente sábia e, assim, condicionar-lhe as decisões, impedindo um candidato de o ser indefinidamente, não só abala as fundações do regime como desrespeita a liberdade de juízo dos eleitores.
Percebi que, genuinamente, não lhe ocorria a frequência com que, em particular no contexto autárquico, há votos que se determinam de formas bizarras. Ou que há presidentes de câmara que se comportam como verdadeiros xerifes, concentrando poderes “democráticos” de uma forma que envergonharia muito ditador: a polícia, as licenças, o emprego, os bombeiros, a comunicação social, o clube de futebol, as associações culturais, tudo depende, em muitos lugares deste país, de um homem só, do presidente, do presidente do concelho, com "c", claro.
Mas também os há que, não sendo ditadores, acabam por se instalar, sendo essa a segunda razão que justifica a limitação de mandatos e a que, concedo, melhor encaixa no perfil do dr. Carlos Encarnação.
Primeiro, porque nenhum dos itens que utilizei acima para caracterizar os ditadores locais confere com a prática do dr. Encarnação: a sua polícia municipal é uma simples força de reboque, o que é a única forma de repressão, mesmo contra os criminosos, que se lhe conhece; quanto às licenças, sabe-se que é bastante benevolente – tanto aprova a construção dos poderosos, como autoriza modestos planos de jardinagem no Mondego; ainda a propósito, não se lhe conhecem grandes cumplicidades com o futebol local, cujos dirigentes conhece apenas vagamente; por outro lado, mesmo que fosse à bola, é sabido que os amigos da cultura não o acompanhariam; é ainda certo que, em matéria de protecção civil, com excepção do resgate de gatídeos, tem sempre a generosidade de remeter os louros todos para o Governo; conceda-se que também não é o emprego a municiar-lhe o regime, porque em Coimbra, façamos mais uma vez justiça ao dr. Encarnação, não há emprego; e, finalmente, quanto à comunicação social, convenhamos que este texto lhe faz ressaltar uma cristalina isenção.
Mas depois ainda, não pertence o dr. Encarnação à categoria dos ditadores porque a Coimbra que construiu não é uma ditadura. É, quando muito, uma dita-mole. Um recatado canteiro privativo. A queda para a jardinagem do dr. Encarnação fez de Coimbra um daqueles canteiros de flores que até podem ser bonitos, mas que não deixam de ser uma natureza aprisionada pelo capricho, uma energia frustrada, uma promessa que não se cumprirá, jamais.
Ao contrário do meu amigo, que apesar de tudo ainda se ofende com a limitação de mandatos, o dr. Encarnação já tinha imposto, a si próprio, esse limite. Acabou por mudar de ideias, mas a verdade é que a democracia pode mesmo mudar-lhe a sorte e eleger Álvaro Maia Seco como o próximo presidente da câmara de Coimbra. Para ambos os efeitos, uma razão, pelo menos, assiste ao meu amigo: ainda há momentos em que o povo escreve certo por linhas tortas.