17.4.09

O piano foi aberto. Haja quem o toque


Para que conste, publico, abaixo, intervenção minha, na apresentação d'"O homem que abria o piano", expurgada de algumas notas pessoais e dedicatórias que são, naturalmente, irrepetíveis.

Agradeço a presença de todos os que me acompanharam.

Hoje é, como imaginam, um dia importante para mim. Mais tarde ou mais cedo, há passos que têm que ser dados. Com responsabilidade, reflectidamente, mas acredito também que colocando o coração à frente da razão, assumindo alguma dose de loucura e sem perder a capacidade de sonhar.

Não me refiro, ao contrário do que possam pensar, à concreta publicação deste livro. O livro - este “O homem que abria o piano” - é apenas a arma do crime. O meu delito, neste caso, é mais a afirmação das ideias, é mais a expressão livre do que penso sobre a minha cidade, assumindo as dúvidas, arriscando o erro, podendo, aqui e ali, ser injusto ou precipitado, mas dando um passo em frente, recusando sempre - ou pelo menos, questionando - os lugares comuns, os falsos consensos, o conforto do politicamente correcto.

Acredito que o mundo não avança, e que Coimbra não avançará, deixando-se arrastar pelos ventos de feição. Deixando-se flutuar ao sabor da corrente do Mondego. É na contracorrente que o futuro, verdadeiramente se cumpre. Na insatisfação. Na afirmação da liberdade. Também - ou sobretudo - na liberdade de pensar diferente. E esse é, mais do que a publicação do livro - o crime que tenho para vos confessar.
Mas há outro crime que cometo hoje, mais directamente relacionado com a publicação deste “O homem que abria o piano”. É o crime da vaidade. Não posso esconder que me envaidece chegar ao dia de hoje e que há uma parte de mim que espera merecer o vosso reconhecimento e o reconhecimento daqueles que se venham a cruzar com “O homem que abria o piano”. Uma publicação - o acto de tornar público o que fazemos - tem sempre associada alguma vaidade.

Mas também não creio que estes textos cumprissem integralmente a sua função, fechados numa gaveta, ou perdidos no decurso implacável do tempo. Há uma afirmação de cidadania neste textos e essa afirmação ganha densidade no confronto com outras perspectivas, deve sujeitar-se ao escrutínio, à discussão e à crítica, deve ser iluminada pela experiência de cada um, até porque, bem vistas as coisas, este livro não é só sobre Coimbra. Também noutras cidades, um pouco por todo o país, há homens que abrem o piano. Muito aplaudidos. E nem sempre com acerto.

“O homem que abria o piano”, que é também o nome de uma das crónicas, foi um assistente da Orquestra Gulbenkian a quem coube a tarefa de abrir a cauda de um piano, preparando-o para o início de um concerto que teve lugar há tempos em Coimbra. Eu e quase todos os presentes na assistência, aplaudimo-lo, muito entusiasticamente, como se de um artista se tratasse. E só depois, percebendo que não era assim, dei por mim a pensar na armadilha das aparências.

Dei por mim a pensar na facilidade com que nos deixamos enganar pelos fatos vincados, pelas encenações e pelo contágio das massas. Dei por mim a pensar que vivemos, frequentemente, iludidos pela forma e distraídos da substância. Não só na apreciação que fazemos dos outros. Mas também na maneira como, por vezes, nos levamos demasiado a sério e nos embalamos pelos aplausos, nos convencemos de predestinações para que, de facto, não estamos talhados.

Este livro é, num certo sentido, um esforço de desmistificação e um tentativa de avançar um pouco mais, na apreciação de episódios e protagonistas diários.

Mas quero também dizer, muito claramente, duas coisas.

A primeira é que estes textos, agora reunidos num pequeno livro, não se esgotam, nem têm origem, numa agenda politico-partidária. Não são uma arma de arremesso e, podendo parecer o contrário, não têm como único objecto de crítica, aqueles que não partilham da minha filiação partidária. Estes textos, lidos atentamente, querem reflectir sobre uma realidade mais abrangente, a que aqueles que me estão próximos também não escapam.

Todos os partidos, todos os movimentos cívicos, como todas as empresas e todas as famílias têm homens que abrem o piano, homens que tocam o piano e, talvez em maior número, homens que carregam o piano. E não estou certo da importância relativa de cada um, seja em que organização for.

Mas a segunda coisa que quero dizer é que, pretendo estes textos ter uma moral, não pretendem de todo moralizar. Muito menos pretendem colocar o autor, à margem de críticas, sobranceiramente sentado, julgando o mundo a partir da estratosfera.

Este autor que se apresenta perante vós, tem bem consciência de que foi, ao longo dos últimos anos, cúmplice de um sistema político-partidário - se quisermos falar com clareza - cheio de aporias, de inconsistências e vulnerabilidades. Não me esqueço de que sou militante do partido socialista há 10 anos e que ocupo, nesse âmbito, e noutros, funções de alguma responsabilidade.

Tenho a certeza de que muitas vezes terei errado nas apreciações que fiz e que nem sempre terei tomado as melhores decisões. Mas creiam que, em cada momento, tentei pesar todas as circunstâncias, também aqui, separando as aparências da substância, tentando ser justo, solidário, leal e íntegro, e concedam que, algumas vezes, terei acertado.

É o medo de sermos julgados que, as mais das vezes, nos impede de julgar os outros. Julgá-los não num sentido punitivo, mas do ponto de vista da análise. Sobretudo na vida política onde, menos ainda do que no seu habitat natural, rareia a presunção da inocência.

Quero dizer que assumo as minhas liberdades, mas também assumo as minhas responsabilidades.
(…)

Dr. António Arnaut,

Ando há uns meses para lhe tentar agradecer a forma generosa como se disponibilizou para prefaciar este livro. Bem saberá que o tentei fazer, mas sempre que a conversa se encaminhou nesse sentido, o Dr. António Arnaut encontrou a melhor forma de, muito elegantemente, me impedir. Não quis nunca que me alongasse em penhores, elogios, honrarias e reconhecimentos. Percebo e isso só aumenta a minha admiração por si. Mas compreenderá, e compreenderão os presentes, que me aproveite desta circunstância, para me alongar um pouco mais no que tenho para lhe dizer.

Saberá, com certeza, que não apenas eu - muitos jovens, e muitos cidadãos, nesta cidade e neste país - o vêem como uma referência. Quero prestar-lhe homenagem, dizendo apenas que a sua voz, as suas palavras, são uma fonte de inspiração e nos fazem continuar a acreditar numa democracia justa, esclarecida, solidária, igualitária e fraterna. E quero agradecer-lhe por se manter, inapelavelmente, um homem de esquerda, progressista e tolerante, um homem dos valores, resistindo, porém, a ser uma caricatura da esquerda.

Fique sabendo que não tenho palavras para descrever o orgulho que sinto por esta sua “Questão Coimbrã” e que tentarei, não estando certo de que consiga, estar à altura dessa responsabilidade.
(…)