29.12.09

1910-2010


Escrever à beira da passagem de ano tenta-nos a apregoar a bonança. Sabemos que é mentira e que o ano que começa será, se não pior, semelhante ao ano que finda. Mas não nos resignamos. Se sobre a vida e o mundo nos vendem uma narrativa de grandes acontecimentos, é isso mesmo que, no mais fundo, esperamos venha a acontecer.

Esperamos mas não fazemos nada por isso. Se descontarmos a dúzia de passas que metemos no bucho, o banho de água fria e umas cuecas azul-ciano, ficam contados os sacrifícios a que estamos verdadeiramente dispostos para mudar de vida. O que até se compreende: sobreviver à vida é suficientemente difícil para que alguém se dê à extravagância de a mudar. Fica o mundo quase exclusivamente entregue aos mistérios da fé e, imagine-se, da política.

Mas 2010 é o ano da República. O ano centésimo sobre uma inspiradora concepção da coisa pública. E é razoável, por isso, que se abdique da fé, talvez mesmo até da política, para lhe prestar homenagem, esperando de Coimbra coisas grandes, como há muito não se espera.

Nem a divina providência, nem, suponho, a audácia dos políticos, serão bastantes para afirmar, em Coimbra, os valores da República.

Uma cidade onde não há emprego – menos ainda que no resto do país – arrasa qualquer pretensão de estabelecer oportunidades iguais para todos, independentemente da classe social, do grau de instrução ou do género de cada um. Uma cidade onde se compra casa ao dobro do preço praticado à distância de 10 Km, está irremediavelmente distante de se afirmar como um espaço de liberdade. Uma cidade que vê a cultura como uma responsabilidade a meio tempo, talvez uma meia responsabilidade, sempre fará definhar o regime até à simples subjugação, pela ignorância e pelo medo. Uma cidade onde os poderes públicos deliberam à porta fechada, fica a dever qualquer coisa, pelo menos, à transparência.

Creio que a mudança, desta vez, não pode suspender-se da fé, da política ou da sorte. Uma dúzia de passas e umas cuecas azul-ciano não serão, porventura, suficientes. E sendo o banho gelado um bom começo, resgatar a face da cidade e dignificar a República obrigará, decerto, a um pouco mais de nós próprios. Uma vez pelo menos, ainda que de cem em cem anos.